Há algum tempo atrás, em um lugar e um tempo não tão distante do nosso, existia um... Mais um, de tantos desiludidos aos prantos. É essa a história que pretendo lhes contar. Talvez, seu nome não fosse o importante, talvez... A informação mais insignificante, mas mesmo assim eu o direi. Seu nome era César de Antero, alguém tanto igual e um tanto diferente, de decepções mil sobrevivente, e tendo morrido muitas vezes em vida, continuou a respirar o ar da maldita, que já tanto o havia desgraçado.
Após um mês mais de sofrimento, e de desperdício de forças em lamento, César se tornara obcecado pela morte. Quanto mais escuro fosse o local, quanto mais fúnebre o ar lhe parecesse, mais excitado e empolgado se fazia sentir. Mas mesmo assim, nem tudo era felicidade na então vida de solidão deste homem. Lhe faltava uma companhia, que nem livros, nem mesmo a morte supria, algo que este ainda estava à procurar em meio à escuridão de seus pensamentos e dos locais que frequentara. Nem toda a arte ou poesia, nem mesmo a areia e a maresia, música ou pintura lhe tiravam o peso que a soledade lhe trazia; é ai então, que todo o relato desta noite começa. Cansado da presença de vivos, exausto das práticas que tinha visto... César revoltou-se, e resolveu se refugiar no único lugar, onde a morte reina e é senhora. Onde há uma paz real, dada pelo pós-vida: O Cemitério.
***
Adentrando os portões de ferro, ouviu o ranger de seu abrir com um assustador ruído, e a visão que ele teve ao adentrar, foi a mais bela e triste visão para um vivo. Porém, aquilo o alegrara de uma forma que não conseguia entender; embora aquilo o assustasse de certa forma, sentia-se impelido a continuar sua viagem pelo reino dos mortos, por aquela paz negra e mórbida.
Antônio Carlos Gouveia, Maria de Ariano, José de Arimateia .. Ele lia cada nome, olhava cada retrato, cada vestígio do passado, de pessoas que talvez... Fossem tão solitárias quanto ele. Vidas que há muito não existiam, apenas na lembrança embaçada de alguém, sobreviviam. E ao passar a mão por cima das criptas, um retrato lhe atrai o fascínio, uma imensurável atração - uma face branca, não devido à ação do tempo na foto, olhos verdes como esmeralda, cabelos negros, um boca tão linda que à uma maçã se assemelhava - ele ficara extasiado com aquela visão, e pôs-se em tormenta à sacudir a poeria para que pudesse ler o nome daquela bela dama... Luanna Ulrico Albuquerque. O nome o encantara, e lhe veio o desejo ardente de conhecer a dona de tão belo rosto e de nome tão imponente. Embora estivesse ciente da impossibilidade do seu desejo, César parou, sentou, e deixou que uma lágrima de solidão brotasse. A mesma rolou, caiu, e parou sobre a cripta à qual ele observava com tanto anelo.
Uma melancólica visão, e ao mesmo tempo sublime: Um homem, uma lágrima e um túmulo, que apenas se tornavam mais belos banhados pela luz prata e sombria do luar, daquele Março frio e tranquilo. Ele piscou o olhar em um segundo... E se encontrava um tanto sonolento, mas., algo estava estranho, e totalmente fora do lugar. Embora vazio, o reino da morte parecia agitado, e a luz da lua parecia mais sombria do que nunca. Encontrando-se recostado à uma lápide, que para ele, naquele exato momento, agora era uma qualquer após a vista de Luanna - ele tremeu em seu interior, mas de toda forma não temeu. Em um lance de segundo, ele entra em alerta para olhar na direção da cripta da moça falecida - a visão não poderia ser mais perturbadora. E para ele, a mais infeliz - encontrava-se aberta, quase escancarada e seu retrato havia sido saqueado. Agora, mais inquieto que nunca, ele começou a percorrer o cemitério e começara a caçada ao profanador de tão bela figura do além.
E entre uma curva e outra, ele avista ao longe, algo que o congela por dentro, fazendo com que o medo se torne sólido como gelo. Pensa ele: "Meu deus! Estou louco?" E com o corpo trêmulo ele com cautela se aproxima. Um corpo feminino, um vestido rosado um tanto esfarrapado. Cabelos negros e longos, ela virasse para ver quem se aproxima... Choque! Não poderia ser mais macabro. Ele cai com o impacto do momento, a figura começou a se aproximar. Luanna... Ulrico... Albuquerque... "Deus meu!" diz ele, ainda amedrontado. O mesmo rosto da foto, que agora, o presenteava não com uma feição séria como a do retrato, mas com um belo e receptivo sorriso, e lhe fala:
-- Quer ajuda?
Ele em choque tenta gaguejar algumas palavras, quando ela lhe pega a mão. Instintivamente ele começa a levantar com a ajuda da dama.
-- Obrigado! Vo... Você... É, é mesmo quem eu penso que seja?
Ela sorri, com um gargalhada recatada e sincera:
-- Bem, eu sou eu, quem mais eu poderia ser?
-- Desculpe! - Respondeu ele timidamente. - Mas você não estava...
-- Morta? Bem, até alguns instantes atrás penso eu. - Responde ela o encarando nos olhos -- Mas algo me acordou à pouco tempo atrás.
-- Desculpe, receio ter sido eu. - Responde ele abaixando a cabeça.
-- Não se desculpe... - disse ela, sorrindo - Faz algum tempo que estou aqui, embora tenha chegado há pouco tempo em comparação à alguns. Mas creio que o ar de fora me fará bem por uma noite! Então... Como se chama?
-- César... César de Antero. Desculpe-me, estou um pouco assustado.
-- Não precisa se desculpar.
E eles caminharam por algum tempo, entre lápides e criptas, provando da luz de uma lua que sorria pelo realizar daquele até então, impossível encontro. E enquanto eles se olhavam com olhares encantados, - Ela pela alegria de uma vinda à vida inesperada, encontrando alguém que mesmo morta à desejara; ele por anelo deste fúnebre desejo, naqueles olhos esmeraldas profundos em meio àquele frio dos mortos e seus túmulos - sentaram-se em um banco um tanto escondido, em meio à algumas árvores velhas e decrepitas, algo tão sinistro quanto aconchegante, e assim foram conversando. Logo, os corpos estavam próximos, as mãos começavam a se tocar, e uma mistura de timidez, coragem e recato os circundava tanto quando o ar, que agora, morto e vivo, estavam a respirar. O olhares foram trocando-se, os rostos aproximando-se, e os sorrisos e gargalhadas tímidas foram dando lugar à um silêncio amável e delicado, que já mesmo até parecia o ar normal do lugar... Se não tivesse sido precedido por um doce, longo e cuidadoso beijo.
-- Desculpe! -- disse ele eufórico.
-- Pelo que? -- Respondeu ela, com um sorriso feliz nos lábios. -- Você em uma noite, realizou o desejo de toda uma vida, que não fora realizado.
E fechando os olhos, ela recostou sobre o ombro de César a sua cabeça, e aninhou seu corpo junto ao dele. Ele vendo a feliz reação de sua gélida amada, passou o braço em volta de sua fina cintura, à pressionou contra seu tronco, e o único som, em meio àquele silêncio de túmulos, é o som da respiração em sincronia, de uma vida e uma morte, uma triste ironia, de dois destinos iguais que jamais poderiam se encontrar, se não fosse esse abismo de sombras que os encobria no fúnebre fato que até então se sucedia.
Então, ele por simples impulso diz:
-- Já é quase uma hora da madrugada.
-- Verdade? Não vai durar muito... -- Então ela põe em seu rosto uma triste expressão.
-- O que não irá durar? -- Pergunta ele surpreso.
Ela com uma tristeza aparente, tanto quanto o seu belo sorriso põe-se a dizer:
-- Este momento, este amor, este feliz infortúnio! Não creio bem, se fora melhor que tenha acontecido.
Ele tão somente à observa, e sem nenhuma reação... Escuta atentamente cada conjunto de palavras que de seu lindos lábios saiam.
-- Sua tristeza, sua lágrima e provavelmente... Sua vontade de amar... Foi o que trouxeram-me a este momento. A esta incerteza entre felicidade e agonia. Esta agridoce alegria, que pode ser uma brincadeira da deusa Fortuna. Eu, que jamais amei... Agora o amo! Mesmo a morte precoce que passei, não pode privar-nos deste único encontro, que na eternidade jamais será esquecido. Nem mesmo creio, que o relógio de tua vida, esta página irá amarelar.
***
Eles permaneceram abraçados por mais algum tempo, aproveitando cada precioso segundo, até que alguma palavra é dita quebrando o silêncio, em meio aquela noite, de frente para a lua felina.
-- Jamais nos veremos... -- Fala ele ensimesmado
-- Não sei, meu querido. - Responde ela com carinho. -- Mas, mais do que nunca, meu tempo agora é curto. Oferte-me um ultimo beijo, um ultimo selo de nossa linda paixão.
Naquele momento, a mesma lágrima que ele ofertou sobre o túmulo, caiu em seu peito... Vinda de sua fúnebre amada, seu amor obscuro. E com mais um beijo, ela põe a mão sobre os olhos de seu triste amante, que cai em sono profundo. Ao acordar, César não lembrava o quanto dormira, então, ele caminhou até a cripta da paixão que jamais lhe havia sido ofertada. Fechada, Não! Lacrada, como sempre estivera. O esquife de sua amada funérea, com seu lindo retrato muito bem colocado... Como se tudo houvesse sido um sonho, mesmo que parecendo real. Ainda assim, havia ele acordado no banco entre as arvores. Então colocou-se abaixado, em frente ao túmulo empoeirado, tocou o retrato do belo rosto que como por todas as noites de sua vida amara, e disse:
-- Não sei se sonho ou se realidade. Apenas te amo, te amei... E já agora, não sei... Se por ventura de novo amarei em vida. Pois na morte, mesmo ainda que ilusória, encontrei a mais querida. Irreal e impossível... Que para a razão não é admissível... Mas foi meu desejo de amar!
Daquela noite, despediu-se ele... Levando apenas na mente, a lembrança te uma triste semente de paixão. Da caminhada... Da lua prata... De toda a escuridão. Da desgraça de um solitário, mais um entre tantos desalmados, que não entre vivos, mas em sua morte tem se encontrado.
Por Francisco Calado